Conto: Nascida em Sangue, por Luciana Minuzzi

*Este conto faz parte da Revista Cornucopia Vacua #00.

Nada melhor para vocês me conhecerem do que um texto auto-biográfico. Fora essa passagem inicial da minha vida descrita no texto abaixo, posso contar para vocês que sou jornalista e acadêmica de produção editorial pela UFSM. Além desses títulos, sou filha da dona Jurema (que é personagem desse conto e da minha vida) e gateira assumida. Aliás, gosto de todo tipo de bicho, até insetos. Aprendi isso com a minha avó. Espero que gostem da minha reestreia como contista – escrevo desde pequena, mas isso é assunto pra outro conto.

Blog com alguns trabalhos meus como jornalista: http://luminozza.wordpress.com/

Imagem: British Library.
Imagem: British Library.

Nascida em sangue

Por Luciana Minuzzi

Tarde de um bafo quente que só faz em um buraco como essa cidade. Por isso, apelidaram aquele vale como Garganta do Diabo. O próprio deve soprar esse calor pra cá. Enquanto a minha mãe procurava algum conforto sentada perto da janela, se abanava como podia e eu nadava tranquila no seu líquido amniótico. Só o de sempre passava na televisão, a vó assava pão na cozinha, uma passada de mão na barriga e o pensamento em se a filha seria como as crianças que corriam pela rua.

Sentadas na varanda da casa da frente, as meninas dos vizinhos batiam as mãos em algum tipo novo de adoleta. Não eram tão pequenas para se entreter com isso. Estavam naquela idade em que os meninos viram assunto e é preciso se destacar.

“Ah, isso é muito chato de brincar. Vem aqui que  vou te mostrar uma coisa muito massa que o meu pai tem.”

Entraram de fininho no quarto em que o pai dormia. Era policial militar e fazia rondas noturnas para completar o orçamento. Pegaram com o maior cuidado o seu 38 brilhante que ele sempre encerava  com uma flanelinha.

“Bang! Bang! Hahaha”

“Pára, guria. Melhor devolver pro meu  pai.”

“Ah, não vai dar nada, só se eu apontasse pra ti assim e puxass…”

BANG! Um tiro de verdade pintou de vermelho o pescoço da menina que caiu descordada. Barulho suficiente para acordar o pai da garota, que desolado, correu com a filha nos braços, banhada em sangue.

“ALGUÉM ME AJUDA PELO AMOR DE DEUS!”

A visão do homem com a filha mole e ensanguentada no colo fez a minha mãe sair daquele estado de  letargia provocado pelo calor. Pelo corpo quente, caminhou o suor frio. Farejei o medo, o sangue, o drama e também despertei do meu nado tranquilo. Ah, eu queria chegar logo nesse mundo e conhecer esses seres capazes de criar uma arma que mata outros seres. Nasci em sangue e pelo sangue. Menos de 24h depois, dei meu primeiro choro pela menina que sempre iria carregar a cicatriz daquela tarde que me fez acordar.

Até onde posso contar, minha vida seguiu assim, bem como foi nas horas que antecederam a minha chegada. Um tornado de desastres soprado pelo próprio Diabo direto da sua garganta.

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